Uma cozinha encantada

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Na minha vida como indivíduo ativo numa sociedade, como pianista, como mãe, e como professora também, tive a sorte de poder optar muitas vezes – optar envolve, invariavelmente, uma forma maior ou menor de liberdade mas também nos dá a responsabilidade de aprender de uma forma mais profunda, pois cada possibilidade nos traz um repertório novo de experiências.

Às vezes fazemos opções pois há leis que nos permitem, outras porque queremos (ora porque estudamos novos cenários, ora porque somos induzidas por algo ou alguém), porque temos tempo, porque temos disponibilidade financeira, porque quem nos rodeia está de acordo ou porque somos persistentes e preferimos experimentar algo novo para nos aperfeiçoarmos incessantemente, para algumas opções todas as circunstâncias anteriores têm de coexistir, outras são mais discretas e aparentam ser mais inócuas. A minha filha tinha uma varanda linda, transformada em sala de brincar e existia apenas uma cozinha de brincar de plástico vermelho que me frustrava – por ser de plástico, leve, frágil e pouco funcional. No Brasil não há Ikea, mas a cozinha do Ikea e uma resma de blogs com “hacks” para a mesma saltavam-me aos olhos.

No primeiro curso de assistentes Montessori 3-6 que fiz com o Gabriel Salomão, absorvi o máximo que a minha mente, muito menos absorvente, que a da faixa etária estudada permitiu e, tudo me fascinava - até as conversas sobre fantasia e imaginação. A dada altura insinuou ou disse (não me lembro das palavras exatas pois a minha memória não é imparcial) que uma cozinha de brincar seria ou uma perda de tempo ou um obstáculo em forma de brinquedo para o desenvolvimento das crianças (uma sirene de alarme acendeu-se no meu cérebro). A minha primogénita era a minha companheira na lida doméstica e “trabalhava”* imenso – como uma simples cozinha de brincar poderia ser um empecilho e não um direito da minha criança? 

Assim, que saí do curso estava certa que o problema estava na cozinha limitada que tinha. Comprei uma de madeira a uma artesã e estudei a adaptação de uma bomba de água – até funcionava, mas começou a estragar-se a madeira e a cuba era pequena. Desisti da água e comecei a disponibilizar pequenos lanches nela – mas o espaço e a higiene eram mais limitados que o nosso frigorífico e os nossos armários (a que a pequena já tinha acesso e usava com considerável autonomia). 

De repente observei que a cozinha era sim querida: como armário de tintas, penico de bonecas, cesto de lixo, casa de brincar, desafio de contorcionismo, cesto de bolas. Entretanto, a varanda foi ficando cada vez funcional e a cozinha ía adquirindo panos lindos, utensílios e avental, mas nada disso a fazia reconquistar a função inicial. Mudamos de casa novamente, dois anos e meio, após a aquisição do móvel-brinquedo e sobrou muito mais espaço para a cozinha. Também recebemos um terraço como bónus. Mais uma vez, experimentamos limpar e arrumar com algo útil, escolhido por ela, e passados meses de abandono resolvemos transformar o nosso desencanto num fim maravilhoso traçado pela minha filha.

Existia uma expectativa minha e um encantamento da minha filha, mas sentimos que no dia-a-dia, cheio de atividades espontâneas, não existia tempo nem para uma menina centrada nela mesma se encontrar na pequena cozinha, nem para eu tentar dirigir ou repetir atividades que ela encontrou e encontra sozinha invariavelmente na rotina da casa, nos espaços e no tempo em que se entrega totalmente ao seu desenvolvimento, à vontade de ajudar e ser prestável e ao bom funcionamento do seu lar. Hoje, no lugar ocupado pela cozinha (des)encantada ora ganhamos espaço para saltar e dançar, ora residem caixas recicladas que se transformam em construções ou grandes murais de pinturas. E assim, três anos depois uma conversa e preocupação antigas ganharam um novo sentido.

 

* Escrevo entre aspas, para quem não está familiarizado com o método, mas em nossa casa “trabalho” e deleite convivem em qualquer faixa etária num verbo transversal a qualquer faixa etária ou atividade útil.

*Agradecimento especial à paciência e bondade do Gabriel Salomão

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Sara Chong

Sara Chong é mãe, pianista, professora de piano na Prima Escola Montessori de São Paulo. Autora da Educating for Peace. Guia Montessoriana em formação e editora do Brasil do Montestory.

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