Montessori numa escola pública no Alentejo

Que conclusões tirar de três anos, de turmas mistas de três, depois quatro e este ano dois anos de escolaridade e com um foco Montessori como guia para o processo de ensino-aprendizagem na escola pública?

Foi uma experiência incrível, e provavelmente os únicos anos em que me senti uma professora plena, respondendo a particularidades dos meus alunos, respeitando o melhor possível os seus ritmos, formas de aprendizagem, interesses, mesmo com um programa curricular exigentíssimo a cumprir, uma pandemia e exigências profissionais (papelada) e pessoais (filhos) a complicar o processo.

Assim, de um modo geral:

  1. Foi importantíssimo para mim fazer formação. Em definitivo, fazer formação realmente ajuda-nos a ser melhores professores e profissionais. As formações que fiz em Montessori ajudaram a preencher um grande vazio que eu encontrava entre as formações para docentes disponíveis em Portugal, que, a grosso modo, são sempre as mesmas desde que me lembro. Trágico para quem gosta de aprender, como eu. Sou, por isso, grata a todos os que, de forma tão generosa, partilharam conhecimento comigo: as mães Montessori de Portugal, Espanha, França, USA, etc. (somos uma comunidade), às formadoras AMI e de outras entidades, aos meus filhos que mostraram que, com este método e filosofia de vida, aprender torna-se fácil e motor de felicidade com sorrisos e brilhos nos olhos (algo que gradualmente deixei de ver nos olhos dos alunos desde Crato). A Pandemia trouxe a possibilidade de fazer formação online, e isso foi algo muito bom para levar Montessori a mais pessoas que desejavam saber mais.

  2. Garantir materiais Montessori ou Montessori Friendly, disponíveis aos alunos para aprendizagem, reforço de aprendizagem ou auto-aprendizagem, fez uma diferença astronómica na aprendizagem dos meus alunos. Despertou curiosidades, interesses, motivou para ambas as aprendizagens (formal escolar e informal - montessoriana), permitiu a descoberta do mundo a partir deste nosso meio rural e por vezes limitado, tornou a aprendizagem mais ativa, dinâmica e culturalmente interessante. 

  3. A interdisciplinaridade torna-se fácil. O mundo e as diferentes áreas (Matemática, Português, Estudo do Meio, Expressões, Cidadania, TIC) interligam-se pois, na realidade e no mundo, a sua separação é inexistente. Além disso, as crianças processam e aprendem muito melhor conteúdos interligados do que se pensa, pois nestas faixas etárias estão no segundo Plano de Desenvolvimento e estão particularmente sensíveis a esta interligação (elas querem compreender o mundo).

  4. Nestes três anos, colegas de outras áreas: Ed. Inclusiva, Inglês, AECs, psicologia, educação social e educação artística passaram por esta turma e partilharam reflexões que considerei importantes para ajudar a compreender como a aplicação de príncipios da Educação Positiva e Montessoriana torna estas crianças diferentes, para melhor:

  5. As colegas de Ed. inclusiva elogiavam a relação de proximidade que eu tinha com os meus dois alunos com NEE e com os restantes. Afirmaram que a forma como eu trabalhava com eles (Montessori, trabalhos de grupo, trabalho igual em volta de histórias com fichas adaptadas aos diferentes níveis e graus de aprendizagem, projetos e alguma possibilidade de escolha de materiais e aprendizagens) realmente tornava-os mais recetivos à escola e à aprendizagem em geral, e eram claramente alunos felizes e incluídos.

  6. A professora de Inglês, no final do ano, referiu que esta turma fora a melhor de se trabalhar, por características específicas e próprias da mesma: a facilidade de se fazer trabalho de grupo com verdadeira dedicação de todos os membros; esta turma, além de ter alunos bem educados e com vontade de aprender, era realmente uma equipa que funcionava pelo melhor de todos.

  7. Nas AECs eles eram referidos como ativos, algo conversadores, mas aplicados e educados (crianças normais e felizes, portanto aquelas horas, também já não se esperam milagres)

  8. A psicóloga e a educadora social que fizeram alguns momentos de role-playing com a turma, ao nível da Educação Emocional, referiram que ficaram surpreendidas com o facto de que está fora a única turma que tiveram até ao momento em que a palavra ou a intenção de vingança nunca se revelou em nenhum momento.

Para mim, como docente, este feedback foi importantíssimo para reforçar a boa escolha do processo que escolhi para trabalhar com estes alunos.  Fiquei muito feliz pela escola, por mim, por Montessori, por eles e pelas suas famílias. Sem dúvida que este foi um grande trabalho de equipa, e que não faz sentido se de outra forma. 

As avaliações sempre revelaram que este é um processo positivo também. É claro que não tenho como saber se, num ensino tradicional, estes alunos não teriam tido na mesma as mesmas notas que tiveram com Montessori. É possível que tivessem iguais, não sei. O que sei é aquilo que vi: as notas foram, no geral, boas. As notas baixaram com os confinamentos devido às Pandemia. Ao ensino online falta a presença de todos os outros, a relação aluno-aluno-alunos-professor que tínhamos na escola, os materiais, a comunicação próxima, o recreio, a brincadeira. As famílias fizeram um esforço magnânimo, mas não ficou dúvida a ninguém: as crianças aprendem melhor e são mais felizes na escola, com todos e entre todos.

Se no início do trabalho com estes alunos houve alguma estranheza por parte de alguns encarregados de educação, no final o feedback foi positivo. Claro que nunca se vai agradar a todos. Há e haverá sempre encarregados de educação que consideram que o ensino tradicional é o único que funciona (o melhor para tirar notas altas). Na verdade, é para esse ensino que estes alunos provavelmente irão, agora que saio desta escola e em que alguns transitaram para o 5ª ano. O tempo dirá.

Mas, e usando as palavras positivas que me foram transmitidas pela maioria dos E.E.:

"Os materiais foram uma mais valia para que os alunos percebessem melhor os conteúdos curriculares."

"Os trabalhos de projeto entusiasmaram e motivaram muito os alunos, principalmente durante os confinamentos."

"As crianças aprenderam muito sobre computadores durante os confinamentos."

"O meu filho nunca disse que não queria vir para a escola, ao contrário do primo, que anda numa escola de cidade e detesta a escola."

"Afinal a vantagem de ser uma turma mista é que, como eles ouvem as explicações da professora aos mais velhos, no ano seguinte é-lhes mais fácil porque já ouviram e até aprenderam no ano anterior."

"Com este trabalho que a professora fez com eles, eles adaptar-se-ão melhor a qualquer professor, seja mais tradicional ou com métodos diferentes."

"Esta é realmente uma turma unida e são muito amigos uns dos outros, e também aprendem muito uns com os outros."

"São crianças que adoram a escola, que todos os dias querem vir para a escola e vêm entusiasmados."

Como será o meu próximo ano letivo? Não sei. Desta vez fiquei colocada numa realidade completamente diferente, quase oposta: cidade do norte do país, escola de turmas de um só ano letivo (o que confesso que me agrada, pois coordenar conteúdos curriculares de vários anos de escolaridade deixou-me exausta), escola moderna de salas pequenas, turmas grandes, recreio de betão quase sem árvores...

Como será que vai ser? Dizem-me que há abertura e desejo de formas pedagógicas diferentes, será que sim? E como resolver a falta de espaço duma sala pequena cheia de alunos? A ver vamos. No entanto, não desisto e aceito o desafio. Montessori faz de nós seres melhores. E é tudo o que desejo para o futuro da Humanidade.

Testemunho de Ana Faria, professora de 1º Ciclo do Ensino básico e Assistente Montessori que conseguiu, numa escola pública no Alentejo, implementar o Método Montessori.

O texto foi originalmente publicado no blog “Montessori em nossa casa”.

Ana Faria

Ana Faria é mãe, professora do 1º Ciclo do Ensino Básico. Musicoterapeuta e Assistente Montessori 3-6 ano. Autora do blog “Montessori em nossa Casa”, onde relata a sua experiência montessoriana com os filhos.

Anterior
Anterior

Características de uma casa Montessori vs. uma sala de aula

Próximo
Próximo

A Escola Ideal