Com écrans ou sem eles

Por sugestão da Mara Alves escrevo hoje sobre telas. É um assunto incontornável, mas desconfortável – tal como muitos assuntos que se debruçam sobre educação e, por conseguinte, que afetam nossa visão de mundo. Aceitei prontamente escrever sobre este tema quando vi a minha maternidade em retrospetiva: antes de ser mãe trabalhava com crianças apenas como professora de piano e pianista acompanhadora e não tinha a responsabilidade de decidir sobre a exposição de qualquer criança a écrans. Quando engravidei perdi algumas horas a pesquisar quais seriam os melhores programas de televisão para a infância, mesmo antes de procurar sobre aspetos do crescimento ou alguns cuidados básicos. Sou de uma geração em que a televisão já era comum e a TV a cabo relativamente acessível para famílias com um salário médio, pelo que Discovery Channel, National Geographic e Canal Panda foram fiéis companheiros da minha infância. Descobri vários programas para o público infantil para desenvolver diferentes áreas, mas também estudos científicos que derrubaram a minha crença forte e fizeram soar o alarme da importância da informação de qualidade sobretudo quando as nossas ações afetam a vida de outro indivíduo, em que o pronome possessivo delimita unicamente a relação da criança connosco e não da interação dessa pessoa com o mundo.

Temos de considerar vários fatores para avaliar danos e benefícios que os écrans podem acarretar. Não pretendo estender-me sobre os malefícios possíveis pois artigos de qualidade podem ser facilmente encontrados no google - pesquisas sob a alçada das melhores universidades do mundo enumeram cada vez mais um número maior de danos causados pelos excessos tecnológicos. Vou simplesmente descrever como perspetivo e meço esse contato com a tecnologia pessoal e profissionalmente e em que momentos a utilizo como aliada e, arrisco dizer de forma ousada, como serva de meus propósitos.

Um dos principais tópicos neste assunto é a idade de introdução da tecnologia: qual a verdadeira necessidade de as apresentar antes dos 2 ou 3 anos de idade? Do ponto de vista da criança não há necessidade­ – está num processo muito difícil de apropriação do que a rodeia, preocupada com movimento, obstáculos, observação da mobília, utensílios, plantas, gatos, engrenagens, rodas, linguagem, ruídos. O tamanho e atividades que a casa encerra são colossais e a rua assemelha-se a um admirável mundo concreto e manipulável. Eu sei, parece impossível fazer algo sem delegar a criança, mas nenhum écran se responsabiliza por ela, até alguns meses de idade a televisão ou outra distração não são eficientes a cativar a atenção do bebé e depois de alguns meses de idade podemos envolver a criança em quase tudo o que fazemos e começar também a confiar na independência que desenvolveu para procurar suas próprias atividades inspirados nas tarefas que executamos – a imitação é natural, prazerosa e necessária. Se é verdade que muitas vezes nos gasta uns minutos extra para arrumar o que foi espalhado também é garantido de que esse banco de minutos despendidos diariamente terá um retorno em diversas áreas poucos anos depois.

A segunda questão é o cuidado que devemos com as fontes que escolhemos. Alguns canais abertos, o Youtube, jogos grátis e mesmo alguns canais pagos possuem uma quantidade excessiva de publicidade que mina, ludibria e condiciona muitas mentes de adultos mesmo com o respaldo de uma vida de experiências – como não tentar defender as nossas crianças deste vilão quase omnipresente e cada vez mais apelativo e indiscreto?

O terceiro tópico que deixo para reflexão é o tipo de écrans. Não creio que para o meu estilo de vida o tablet ou o telemóvel sejam necessários, por enquanto, para as minhas filhas por exemplo, no entanto ambas podem controlar o meu telemóvel quando falam com a família que está distante – nem contabilizo como tempo de écran, mas como tempo de interação – é a nossa realidade atual e confio mais na responsabilidade delas do que temo o dano desse objeto que estimo.

Por fim, devemos falar da escolha de conteúdos. Escolher já é uma missão difícil. Em minha casa, hoje, a televisão como um meio de expansão cultural. Antes da pandemia a nossa presença em teatros, concertos e museus era assídua pelo que não me choca que permaneça mais de duas ou três horas à frente da televisão para ver uma ópera do início até ao final e deleitar-se com Elina Galanca e a Carmen, por exemplo. Não creio que essa expansão possa ser feita ao acaso, delegando aos algoritmos essa tarefa, mas sem dúvida que dentro dos écrans existe uma fonte infindável de recursos que, trazendo conhecimento de fora, podem abrir as nossas perspetivas de mundo. O cinema e os filmes de animação são parte inquestionável da cultura também e a partir dos 5 ou 6 anos acho importante introduzir no nosso lar. Os documentários sobre vida selvagem têm o poder de ampliar a nossa visão cósmica e documentários com antropologia podem criar sementes de fascínio por momentos específicos da história. Quanto à relação dos écrans com as crianças mais velhas? É cedo para partilhar dicas devido à minha inexperiência, mas sei que são parte do nosso mundo, que fazem parte da vida social das crianças e que cuidados, regras, limites e equilíbrio são necessários em qualquer faixa etária

O segredo estará, para mim, em continuar a saber desfrutar do silêncio, a preferir viver experiências do que ficar imóvel num mundo virtual (“a correr, saltar, cavalinho não saía do lugar…”), em nunca abdicar da liberdade de eleger aquilo em que investimos o nosso tempo.

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Sara Chong

Sara Chong é mãe, pianista, professora de piano na Prima Escola Montessori de São Paulo. Autora da Educating for Peace. Guia Montessoriana em formação e editora do Brasil do Montestory.

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